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Olimpíadas / FUTEBOL E HISTÓRIA

Viva Uruguai... 100 vezes viva!

O autor, único jornalista presente 100 anos depois em Colombes, nos arredores de Paris, palco do primeiro triunfo do futebol latino-americano na Europa, com caráter de título mundial, conta seus sentimentos a menos de dois meses dos próximos Jogos Olímpicos

Edgardo Martolio (de Paris) Publicado em 12/06/2024, às 17h40 - Atualizado às 19h02

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Em Colombes, a noroeste de Paris, apenas 15 quilômetros da Torre Eiffel, o futebol latino-americano alcançou sua primeira glória - Acervo pessoal
Em Colombes, a noroeste de Paris, apenas 15 quilômetros da Torre Eiffel, o futebol latino-americano alcançou sua primeira glória - Acervo pessoal

Domingo, 9 de junho de 2024. Uma manhã ensolarada da fria primavera francesa. Assim como foi há 100 anos, neste exato lugar onde estou esperando por uma homenagem que ninguém mais celebrará. Aqui, neste estádio em Colombes, noroeste de Paris, apenas 15 quilômetros da Torre Eiffel, o futebol latino-americano alcançou sua primeira glória ecumênica. E, ainda mais meritório, conseguiu ela em sua primeira participação.

Não foi obra de argentinos ou brasileiros, foi amassada pelos meus admirados uruguaios que, naquela época, jogavam futebol melhor do que ninguém. Aqui eles derrotaram os Estados Unidos e todos os europeus que enfrentaram com goleadas épicas, como a vitória por 7 a 0 sobre a Iugoslávia, eliminando a seleção francesa, a equipe local, e cravando um 3 a 0 para a Suíça na final, diante de 40 mil torcedores que assistiram a uma rodada dupla (duas horas antes, a Suécia venceu a repescagem pelo terceiro lugar contra a Holanda).

Pela história mal contada pela imprensa nas décadas posteriores, naquele dia o Uruguai era "apenas" o campeão olímpico de 1924; mas, a verdade é que ele se sagrou campeão mundial porque foi isso que estabeleceram em março de 1921 o COI (Comitê Olímpico Internacional) e a Fifa. Assinaram que, a partir de 1924, o triunfo nos Jogos Olímpicos seria considerado um título mundial devido à participação de países não europeus, como Egito, Estados Unidos e Uruguai, desde que filiados à Fifa (o Uruguai aderiu em 1923). E assim, tratando os orientais como campeões mundiais, titularam os jornais franceses que cobriram sua primeira Olimpíada parisiense, a sétima da Era Moderna.

O Uruguai éramos todos os latino-americanos naquele dia, pois eles representavam nosso subcontinente depois de ter conquistado o campeonato sul-americano em 1923 – hoje Copa América – e o maior cartola da história oriental, Enrique Buero, com o aval do presidente da AUF (Associação Uruguaia de Futebol), Dr. Atilio Narancio, havia prometido àquele elenco de 21 jogadores que,  se vencessem o Campeonato Sul-Americano em Montevidéu, os levariam em turnê pela Europa e os inscreveriam nos Jogos de Paris. E assim foi.

Depois de 21 dias balançando-se no barco, a turnê começou um mês e meio antes, na Espanha, onde os uruguaios venceram suas nove partidas. Foi a primeira vez que uma seleção ou clube "deste lado do planeta" pisou no Velho Mundo para mostrar suas habilidades. Um Velho Mundo que primeiro surpreenderam e depois maravilharam.

14 JOGADOS, 14 VENCIDOS

O impecável diplomata Buero (o mesmo que conseguiu que o Uruguai sediasse a primeira Copa do Mundo, em 1930) fez essa promessa porque precisava motivar o "team", como se dizia naquele belo tempo. Pois, esse time não tinha jogadores do Peñarol (já o outro "Grande" junto com o Nacional no bicéfalo futebol oriental). O clube havia sido desfiliaado na época pela AUF como punição por uma desobediência. Assim, além das sete figuras do Nacional, todas amadoras, os demais jogadores eram de clubes menores, como o Bella Vista que entre outros estava representado pelo grande capitão José Nasazzi; ou eram da clubes extintos como o Charly FC que criou o artilheiro daqueles Jogos de Paris, Pedro Petrone, com sete gols. E lá foram eles e aqui em Colombes se consagraram: entre oficiais e amistosos, 14 jogos, todos triunfos, com 45 gols a favor e 10 contra (jogavam pelos 50% da arrecadação do jogo).

Hoje, Colombes apenas lembra desse centenário com um par de imagens em sua exposição fotográfica a céu aberto, a Fifa tem esse marco histórico mais esquecido que o COI, a América Latina não o resgata devidamente, talvez por inveja de vizinhança, e o Uruguai não se vangloria disso porque parte de sua tímida grandeza é movida a injusta modéstia. Mas Uruguai erra como os outros erram. Neste momento, neste estádio, não posso ser só eu quem, in loco, homenageia os gloriosos orientais por terem sido os primeiros a “pintar a cara dos europeus” (todos foram triunfos, nem sequer um empate). No entanto, ninguém aqui percebe a importância da data; tudo mudou hasta a etnia dos passeantes: quase nenhum francês original anda por suas ruas...

Colombes pertence ao distrito de Hauts-de-Seine, no Ilê de France (Paris) e o estádio, um complexo poliesportivo, é de propriedade do município. Seu bairro não tinha mesquitas naquela época porque não havia muçulmanos como há hoje aos montes e os negros que diante dos meus olhos parecem ser a maioria eram tão poucos naquele tempo que os que jogavam pelo Uruguai chamavam-lhes a atenção, como José Leandro Andrade, chamado “a maravilha negra”. O grande goleiro Andrés Mazali ou os irmãos Urdinarain, nem o "Vasco" Cea, atacante do modesto clube Lito, hoje conseguiriam reconhecer o cenário que os catapultou à fama. Tudo mudou mesmo.

PRIMEIRA VILA OLÍMPICA DA HISTORIA

Aqui, para aqueles Jogos de 1924, também foi construída a primeira Vila Olímpica da história, precários barracos de madeira entre ruas de terra empoeirada. Nada sobrou de tudo isso, o suposto progresso os demoliu. Apenas sobrou uma pequena casa de pedra, tão pequena quanto agradável, que devia ser a secretaria. No entanto, o diretivo Buero – sempre Buero – conseguiu que o elenco "celeste" – o Uruguai usa essa cor desde 1910 – se concentrasse nas proximidades, em um petit-hotel na comuna de Argenteuil, patrimônio da rica família Pain (a dona da casa, uma senhorinha idosa, servia-os como reis bem antes do time colocar-se a coroa dos vencedores). Aquela propriedade, em cujos jardins cinquenta anos antes Monet pintou suas dálias, também não conseguiu ficar de pé.

Pelé-Colombes-Uruguai
Pelé jogando em Colombes em 1963

Tanto esquecimento entristece. De repent,e vejo crianças chegarem vestindo uma camisa esportiva azul clara, assim como a uruguaia e fico empolgado, mas é a roupa de treino do Racing Club de France, time local que utiliza essas instalações mas como uniforme titular veste uma camisa diferente, igual à dos Pumas (selecionado argentino de rúgbi). Dizem-me logo que as duas camisolas são meras coincidências, que não prestam homenagem e nem sequer imitam os rio-platenses. Eu deveria ter imaginado. Nós, sul-americanos, não somos espelho deles.

Este antigo estádio de futebol de Colombes, motivo da minha visita esta manhã, que com toda lógica deu nome a uma arquibancada do mítico Estádio Centenário, em Montevidéu, foi demolido anos atrás, apesar de ter capacidade para 69 mil espectadores e, agora, em seu terreno, outro menor, improvisado, onde estou, foi erguido. Será usado na segunda Olimpíada de Paris, que começará em 28 de julho desse ano. Mas será palco de disputas de hóquei na erva. Hóquei! Há a promessa de que, assim que as Olimpíadas acabarem, será desmontado e o local voltará a ser um campo de futebol. Talvez sem arquibancadas e provavelmente com grama sintética.

PELÉ E O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO

O que já ficou para trás será sepultado definitivamente. Aqui, em Colombes, também outrora sede da Copa do Mundo de 1938, Pelé já deu show (28 de abril de 1963, Brasil 3 x 2 para a França, três gols de "O Rei"). O filme "Carruagens de Fogo" retrata este lugar a partir do atletismo contando a saga de dois "sprinters" britânicos (Eric Liddell e Harold Abrahams). Tudo isso será terra arrasada. O agora substituído estádio Colombes, nascido em 1883 como um hipódromo, mais tarde batizado Stade Olympique Yves-du-Manoir, foi palco de muita história esportiva, especialmente francesa e o rúgbi (até a inauguração do estádio Parc des Princes). Por isso tudo deveria estar de pé como um antigo coliseu. No entanto, há quem diga que era certo demoli-lo na época, porque esse campo também foi usado na Segunda Guerra Mundial como campo de concentração temporário pelos franceses que detinham alemães e austríacos para saber se eram espiões do nazismo. A história é cheia de contradições, mas mesmo por isso deve ser mantida o mais intacta possível.

Enfim, o que me decide a partir duas horas depois de ter chegado, não é só a final de Roland Garros que em horas exibirá o seu novo campeão (o espanhol Carlos Alcaraz); é a insensibilidade do atual negócio do futebol que paga milhões a qualquer “perna-de-pau” e não consegue manter vivas as suas memórias mais simbólicas... Mas, antes de cruzar o limiar do Boulevard Pierre de Coubertin em direção à Rue Olympie faço a minha homenagem; grito: "Viva o Uruguai!”.

Monsieur Khan, o careca e atencioso zelador do estádio, olha-me sem me entender. Digo-lhe que deveríamos gritá-lo 100 vezes porque o centenário de tamanha glória uruguaia é o mínimo que merece. Agora ele sabe que guarda um templo, que cuida de um lugar com alma charrua, sagrado no mundo do futebol e que alguns de nós envelhecemos perdendo a memória, mas continuamos a respeitar a história.

* Edgardo Martolio é jornalista, autor do livro Glória Roubada: O Outro Lado das Copas